sexta-feira, 16 de maio de 2014

Reginaldo Faria, um homem de cinema



Escrevi o texto abaixo para a homenagem feita ao ator e diretor Reginaldo Faria pela Mostra de Cinema de Ouro Preto de 2012. Por conta de minha pesquisa sobre as adaptações para o cinema da obra de Plínio Marcos, eu tinha um interesse particular por Reginaldo e esse texto, publicado no catálogo da mostra, foi uma oportunidade de exprimir algumas das minhas impressões sobre ele.



À direita, entregando o troféu a Reginaldo no CineOP 2012


Reginaldo Faria, um homem de cinema.

Até o final dos anos 1970, apesar de já ter participado de algumas novelas ainda nos primórdios da TV Globo, Reginaldo Faria era essencialmente reconhecido como um homem de cinema. Astro de diversos filmes e diretor de sucessos de bilheteria, dos três irmãos sócios da R. F. Farias (Riva, Roberto e Reginaldo) ele era provavelmente o mais conhecido do grande público.
Após atuar em grandes êxitos de audiência na TV Globo, como Dancing Days (escrita por Gilberto Braga, 1978-9) e Pai Herói (Janete Clair, 1979), Reginaldo Faria passou as duas décadas seguintes participando de praticamente uma telenovela por ano. Como muitos de sua geração, incluindo seu irmão Roberto, em meio à longa crise do cinema brasileiro a partir dos anos 1980, Reginaldo optou por se dedicar principalmente à televisão.
Assim, trabalhando com os principais novelistas da TV Globo, Reginaldo é hoje muito lembrado por várias gerações de espectadores como intérprete de papéis memoráveis na emissora: o hilário estilista Jacques Leclair em Ti ti ti (Cassiano Gabus Mendes, 1985-6); o vilão Marco Aurélio que termina Vale tudo (Gilberto Braga, 1988-9) fugindo de helicóptero e dando uma “banana” para o Brasil; o viúvo Capitão Jonas, pai das crianças que enfrentam os vampiros de Vamp (Antonio Calmon, 1991-2); Leônidas Ferraz, rico empresário e pai dos gêmeos de O clone (Glória Perez, 2001-2), entre muitos outros.
Reginaldo não deixou de atuar esporadicamente no cinema – fosse no papel marcante de homem maduro seduzido por uma ninfeta em A menina do lado (dir. Alberto Salvá, 1987) ou interpretando o célebre personagem de Machado de Assis, Brás Cubas, em Memórias póstumas (dir. André Klotzel, 2001) –, retornando mais recentemente à direção com O carteiro, filmado em 2010.
Entre o cinema e a televisão, tudo começou com música, pois Reginaldo inicialmente sonhava viver de seu violão. Aos 19 anos deixou a Nova Friburgo natal em direção ao Rio de Janeiro, onde seu irmão mais velho tinha ido tentar a sorte no cinema. Na cola de Roberto Farias, prestigiado assistente de direção e, depois, diretor, Reginaldo conseguiu seus primeiros trabalhos, atrás e à frente das câmeras, essencialmente em chanchadas como No mundo da lua (1958).
Acompanhando o irmão Roberto, o ator também fez a passagem das comédias para os filmes sérios, protagonizando o policial Cidade ameaçada (1959), no qual assumiu o papel do bandido Passarinho, perdido entre a carreira no crime com seus comparsas e a vida em família junto à mulher operária.
Sua “pinta” de galã, que o habilitava a líder de quadrilha ou alvo do amor da mocinha, já seria tratada de forma mais complexa em Assalto ao trem pagador (1962). Como no filme anterior, ele era novamente um bandido, mas, por seus cabelos loiros e olhos azuis, se distanciava dos demais membros da gangue de negros ou brancos pobres e favelados, como Átila Iório, que, em seguida, interpretaria o miserável Fabiano de Vidas secas (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1963). Achando que tinha se “dado bem”, gastava o dinheiro do roubo com uma interesseira madame de Copacabana, tendo como principal antagonista não a polícia, mas Tião Medonho (Eliezer Gomes), com quem disputava a liderança da quadrilha. O embate verbal entre os dois personagens – interpretados por um ator ainda iniciante e um estreante – é um dos pontos altos de Assalto ao trem pagador, e Reginaldo, amarrado e preste a ser jogado no mar, consegue dar aos fortes diálogos racistas a violência e o ódio que o tornam, até hoje, impressionantes.
Nos anos 1960, Reginaldo experimentaria vários papéis, sendo dirigido por diferentes cineastas – do cinemanovista Paulo Cesar Saraceni ao paulista Flávio Tambellini –, mas mantendo uma frutífera parceria com o irmão Roberto. No subestimado Selva Trágica (1963), passado nas fazendas de mate da fronteira entre o Brasil e Paraguai, o ator tem uma interpretação intensa, de extrema dedicação e desgaste físico. A angustiante cena em que ele é obrigado, sob as ordens do cruel “feitor”, a erguer, nas costas, dezenas de quilos de folha mate, provavelmente influenciou Glauber Rocha na famosa seqüência em que Geraldo Del Rey sobe o Monte Santo carregando uma pedra na cabeça em Deus e o Diabo na terra do sol (1964).
Roberto também dirigiu seu irmão em Toda donzela tem um pai que é uma fera (1966), comédia na qual Reginaldo assumia o papel do playboy conquistador, mas com uma certa fraqueza... Seria como o personagem do galã meio desajeitado – o jovem cuja felicidade é sempre incompleta, típico do cinema da época – que ele protagonizaria o primeiro filme que também dirigiu, Os paqueras (1969). Sinal de sua vocação e talento, o filme em que estreou como cineasta se tornou um dos mais vistos no Brasil, entre produções nacionais e estrangeiras, naquele ano!
Por conta do seu enorme sucesso de público, que gerou inúmeras imitações e seguidores, Os paqueras foi consagrado posteriormente como filme precursor da pornochanchada, um tipo de comédia erótica que se desenvolveria muito mais na linha, por exemplo, do escrachado Sete faces de um cafajeste (Jece Valadão, 1968). O fato é que, como ator, Reginaldo se consagrou num tipo que outros jovens atores também investiriam, como Carlo Mossy, Cecil Thiré ou Cláudio Cavalcanti. E, como diretor, Reginaldo realmente seguiria no lucrativo filão de comédias picantes no início dos anos 1970. Um dos melhores exemplos é Os machões (1972), uma hilária comédia na qual Reginaldo, Flávio Migliaccio e um surpreendente Erasmo Carlos são obrigados a se passar por “bonecas”. Sem o aspecto às vezes tosco e grosseiro que iria caracterizar outras produções contemporâneas de tema semelhante, o filme conquistou merecido sucesso popular.
Entretanto, diante do aumento da concorrência (sobretudo das telenovelas) e da diminuição do nível de outros concorrentes (especialmente da Boca do Lixo), as comédias dirigidas por Reginaldo iriam mostrar, em meados da década de 1970, certo esgotamento. Nesse momento, retirando da gaveta um argumento de Plínio Marcos que Roberto pretendera dirigir ainda no final dos anos 1960, Reginaldo decidiu passar “do riso ao compromisso” com o filme Barra pesada (1977). Retomando um autor (o mesmo de Navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja) e temática (violência e criminalidade urbana) praticamente banidos do Brasil da ditadura e do milagre econômico, Reginaldo fez uma obra de apelo popular, rara sensibilidade e extrema contundência, permeada por aguda crítica social, direcionada, por exemplo, à conivência entre a violência da polícia e a do tráfico de drogas.
Como outros filmes realizados naquele momento de início de “abertura”, como A queda (Ruy Guerra, 1978), Reginaldo dialogava com o passado anterior ao AI-5 e retratava um Rio de Janeiro de áreas degradadas (Lapa e Ilha do Governador) ou “escondidas” por trás dos escombros de obras faraônicas (o cais do porto durante a construção do viaduto da perimetral). O curioso é que Barra Pesada, no qual Reginaldo faz apenas uma pequena ponta como ator, foi lançado praticamente junto de Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1978), protagonizado por ele mesmo, mas dirigido por Hector Babenco. Logo após ser consagrado pela crítica e pelo público por esses dois filmes, Reginaldo, apesar de ainda estrelar outro título de grande impacto (Pra frente, Brasil, 1982) e dirigir mais uma produção (Agüenta coração, 1984), iria se tornar uma presença muito mais constante na telinha que, cada vez mais, passaria a estar presente na casa e na vida da maioria dos brasileiros.
Como dissemos no começo deste texto, na televisão, como antes no cinema, Reginaldo daria continuidade a uma carreira de grandes personagens. Um ator inquieto e talentoso, em uma busca constante pelo desafio que seu trabalho lhe possibilita, o mais jovem dos três irmãos Farias continua, até hoje, a nos surpreender, entreter e emocionar. O artista revela-se mais maduro, mas com o mesmo entusiasmo juvenil pelo ofício.


Rafael de Luna Freire