segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O produtor Jece Valadão, texto de 2006

Valadão e seu filho na abertura da mostra no CCBB-RJ
Por conta de minha pesquisa sobre Plínio Marcos, acabei me interessando em estudar a carreira do ator, diretor e produtor Jece Valadão. Atualmente, inclusive, estou finalizando um artigo sobre ele para um livro sobre o estrelismo no cinema brasileiro. Nesse caso, discuto a figura estrelar do ator Jece Valadão, mas já tinha escrito antes sobre sua faceta como produtor num artigo para a mostra "As muitas faces de Jece Valadão: 75 anos de cinema", realizada no Centro Cultural Banco do Brasil em 2006, poucos meses antes de sua morte no final daquele mesmo ano. A abertura da mostra foi a única (e última) vez em que eu o vi pessoalmente. Já que nessa época os catálogos das mostras do CCBB não eram publicados na internet, meu texto "O produtor Jece Valadão" permanecia inédito na rede..



O produtor Jece Valadão

Uma das principais características da longa trajetória do “homem de cinema” Jece Valadão foi o senso de oportunidade que ele manifestou em diversos momentos de sua carreira como artista e homem de negócios, marcada pela presença à frente e atrás das câmeras. Oportunista ou pioneiro, ele gravou definitivamente seu nome na história do cinema brasileiro moderno.
A primeira grande “sacada” de Valadão foi perceber que como radioator ou locutor radiofônico jamais sairia da pindaíba, mas como corretor de anúncios para a rádio poderia ganhar (e ganhou) uma pequena fortuna. Logo foi atraído para o mundo do cinema, o que no Rio de Janeiro da época – anos 40 / 50 – significava basicamente os estúdios da Atlântida, mas onde não conseguiu passar de figurante. Vislumbrou uma oportunidade no incipiente “cinema independente” e teve uma participação importante no seminal Rio 40 graus (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1955), mas também não foi nessa trilha que ele viu seu futuro. Partiu então para o teatro e para o casamento com Dulce Rodrigues, irmã do dramaturgo Nelson Rodrigues, mas não foi nos palcos e nem com o fracassado golpe do baú que conseguiu alavancar definitivamente sua carreira.
Quando retornou ao cinema, Valadão criou uma produtora – a Magnus Filmes – e decidiu investir tudo que tinha em Os Cafajestes (1962). Influenciada pela Nouvelle Vague, se a obra de estréia do moçambicano Ruy Guerra entrou para a história como marco pré-Cinema Novo, a produção de Valadão era também um filme estrelado pela sensual vedete Norma Bengell  e no qual, segundo seu astro, “pela primeira vez o cinema mostrou como se enrola um baseado”. A ousadia e a liberdade na linguagem cinematográfica eram correspondentes à temática, embora muitos considerassem simplesmente baixaria e mau-gosto. A polêmica em torno do famoso “primeiro nu frontal do cinema brasileiro” ajudou Os Cafajestes, que, apesar dos problemas com a censura brasileira, nos anos seguintes deu muito dinheiro ao seu produtor com as vendas para o exterior.
Seguindo na mesma linha polêmica, a investida seguinte do produtor Valadão foi levar pela primeira vez às telas uma peça do seu cunhado Nelson Rodrigues. Depois de dar uma chance a Ruy Guerra – com qual chegou a trocar tapas no set –, Valadão convidou um então endividado Nelson Pereira dos Santos para dirigir Boca de Ouro (1963). Resultado: outro sucesso de bilheteria que mais tarde seria consagrado como obra-prima do cinema brasileiro. Para parte do público e da crítica da época, o desfile de seios nus, de adultérios e de gírias era ousadia. Para outra parte, tratava-se apenas de apelação.
Tanto com o playboy de Os cafajestes, quanto com o bicheiro de Boca de ouro, Valadão contou com dois talentosos diretores que o ajudaram a consagrar sua persona de ator, que já tinha sido esboçada com o malandro de Rio 40 graus. “Mau caráter”, “bandido”, “crápula”... os adjetivos presentes nos títulos dos filmes seguintes estrelados pelo ator, produtor e logo, também diretor, confirmariam definitivamente seu lugar de destaque num “star system” do cinema brasileiro.
Atrás das câmeras Valadão se tornou também um dos principais nomes do cinema brasileiro, produzindo mais de uma dúzia de filmes ao longo da década de 60. Insistiu em determinados filões (adaptações de peças de sucesso) e se aprofundou no gênero policial (que ganhara força com o sucesso de O assalto ao trem pagador), mas também procurou diversificar sua produção com filmes infantis, comédias musicais e dramas intimistas.
Estabelecendo um acordo de co-produção e distribuição com Herbert Richers e realizando filmes baratos e em série, a Magnus Filmes viabilizou a inserção de seus filmes no mercado. Pretendendo seguir o modelo de produção industrial dos estúdios hollywoodianos, Valadão se distanciou mais e mais dos integrantes do Cinema Novo, com que passou a trocar agressões mútuas. 
Entretanto, apesar do investimento em filmes de gênero ou ainda em fórmulas fáceis e modismos passageiros, a compreensão das produções da Magnus Filmes como o “cinema comercial” não pode impedir o reconhecimento de um alto nível de elaboração artística em certos filmes, como A navalha na carne (1970). Adaptação da peça homônima que estreara em 1967, o projeto “autoral” de Braz Chediak, jovem e experiente roteirista e assistente de direção de diversos filmes de Valadão, se destacava pelo elenco, sobretudo pela magnífica interpretação de Glauce Rocha, pela extraordinária fotografia e câmera na mão de Hélio Silva e, sobretudo, por um diálogo vigoroso e sofisticado com o poderoso texto de Plínio Marcos.
Realizado em preto e branco em 1969 quando o cinema brasileiro – incluindo o Cinema Novo – já se encaminhava definitivamente para as bem mais dispendiosas produções coloridas, A navalha na carne é um filme realizado a um baixíssimo custo, com equipe mínima, total liberdade, e extrema agressividade do tema e da linguagem na abordagem de personagens e cenário marginais.
Por outro lado, o filme de Braz Chediak também aproveitava o sucesso de uma peça de enorme repercussão, a fama do astro Valadão e se inseria num filão de obras propositadamente polêmicas e ousadas no tratamento de temas tabus, sobretudo o sexo e a violência, e que vinha sendo explorado tanto pelo cinema assumidamente comercial – como os “shockumentaries” na linha do italiano Mundo cão (Mondo cane, 1962) ou a produção inicial da Boca do Lixo –, como também por um cinema de maior prestígio, especialmente os “filmes de arte europeus” ou o “novo cinema americano”.
Depois de seis meses interditado pela censura, A navalha na carne teve pré-estréia no berço da cinefilia carioca, a Cinemateca do MAM – algo pouco comum para a produção corrente da Magnus Filmes –, mas foi também o primeiro filme produzido por Valadão a ser distribuído pela União Cinematográfica Brasileira, de Severiano Ribeiro, dono do maior circuito exibidor do país. Apesar de esquecido posteriormente, o filme A navalha na carne tornou-se um surpreendente sucesso de público em 1970.
Exatamente nesta época, Valadão se uniu a dois dos principais produtores do país, Jarbas Barbosa e Roberto Farias, criando a distribuidora Ipanema Filmes. No momento em que a DiFilm, a “distribuidora do Cinema Novo”, acabava, Valadão se aliava aos produtores dos primeiros sucessos do trapalhão Renato Aragão (Barbosa) e da série com o astro Roberto Carlos (Farias), dando origem à empresa que viria a ser a base da distribuidora da Embrafilme.
Nesse começo da década de 70, em pleno “milagre econômico”, quando a ditadura adotou o projeto de industrialização do cinema brasileiro e passou a privilegiar os filmes de grande penetração no público, Valadão, como os demais produtores do “cinema comercial” que tinham reivindicado a criação da empresa em 1969, era um dos principais favorecidos. Se a pauta era conquistar o “nosso mercado”, seu discurso era um dos que mais evidenciava essa meta, embora essa opinião fosse compartilhada por diversos cineastas, como Carlos Diegues, que já tinham alardeado o fim do Cinema Novo. Entretanto, Valadão definia sua estratégia com muita clareza, visando o mercado interno, pretendendo adotar fórmulas e modelos consagrados, ressaltando os valores de produção dos filmes e chegando a planejar submeter o conteúdo das produções às pesquisas de opinião com o público – algo que a Rede Globo começava a fazer sistematicamente naquele mesmo momento.
Ao longo dos anos 70 Valadão novamente tentou seguir as tendências e diversificar sua produção. Investiu novamente em Plínio Marcos com a adaptação de Dois perdidos numa noite suja (1971), mas não repetiu o êxito do filme anterior. Vinha obtendo mais sucesso com o que ele chamava de pornocafajestadas: a trilogia Memórias de um gigolô (dir. Alberto Pieralisi, 1970), O enterro da cafetina (dir. Alberto Pieralisi,1971) e A filha de Madame Betina (dir. Jece Valadão, 1972).
Quando se envolveu novamente na produção de outro “filme artístico”, Mãos vazias (dir. Luiz Carlos Lacerda, 1971), foi acusado pelo diretor de utilizar parte do financiamento da Embrafilme em outra produção sua (O enterro da cafetina). Pelas páginas dos jornais Valadão rebateu as acusações criticando a falta de profissionalismo do cineasta (“Lacerda se enchia de maconha e ficava todo mundo nu para dar mais clima ao filme”).  
Apesar do sucesso inicial das “pornocafajestadas”, quando o mercado foi invadido pelas pornochanchadas da Boca do Lixo e a imprensa iniciou uma campanha contra o “baixo nível” do cinema brasileiro, Valadão passou a investir principalmente em filmes policiais, ainda assim com alto teor erótico. Essa mudança também se deu com outros personagens dessa “primeira fase” das pornochanchadas, como o cineasta e ator Reginaldo Faria, mas ao contrário do diretor de Os paqueras (1969), Valadão não renegava uma possível paternidade do filão de comédias eróticas, embora afirmasse que “seus seguidores” tinham “engrossado muito”.
Nos policiais da década de 70, Valadão tentou criar uma serialização em torno de sua figura, um “Clint Eastwood nacional”, voltado para o público masculino e popular, próximo de um Tony Vieira e de um David Cardoso. Como os dois astros da Boca do Lixo, Valadão também estava distante do “cinema de qualidade” da segunda fase da Embrafilme, iniciada em 1974, quando a empresa passou a privilegiar os realizadores, sobretudo o grupo político ligado ao Cinema Novo. Se não alcançou grandes sucessos como Barra Pesada (dir. Reginaldo Faria, 1977) ou Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (dir. Hector Babenco, 1978), Valadão conseguiu alguma repercussão com o assumidamente oportunista Eu matei Lúcio Flávio (dir. Antonio Calmon, 1979), a versão do policial Mariel Mariscot. Entretanto, o fracasso do seguinte O torturador (dir. Antonio Calmon, 1980) praticamente encerrou o projeto.
Diante dessa encruzilhada e do enorme sucesso do recém-liberado filme de sexo explícito, em 1981 Valadão chegou a produzir um pornô explícito (Viagem ao céu da boca, dir. Roberto Mauro), embora seu nome estrategicamente não tenha aparecido nos créditos. Um de seus últimos trabalhos como produtor foi a adaptação da peça de Nelson Rodrigues A serpente (1980), dirigida por seu filho, Alberto Magno, filme que permaneceu inédito comercialmente até os anos 90.
Se chegou a ser vice-presidente do Sindicato dos Produtores e do Sindicato da Indústria Cinematográfica, sendo até mesmo cogitado como candidato à direção da Embrafilme e da Concine em 1979, nos anos 80, como muitos outros profissionais, Valadão se afastou gradativamente do cinema. Com uma longa e frutífera carreira de produtor empenhado sobretudo no filme médio para o mercado, o nome por trás da Magnus Filmes foi mais um profissional atingido pela crise que se avolumou ao longo daquela década.


Rafael de Luna Freire