segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Fábula, texto de 2006.



Fábula é um dos meus filmes prediletos. Vi pela primeira vez na Cinemateca do MAM, revendo-o depois duas ou três vezes. Tive a oportunidade de escrever sobre o filme para o catálogo da mostra "Olhares Neo-Realistas", realizada no CCBB de São Paulo pela amiga Gisela Cardoso. Depois desse artigo, o filme também foi abordado por João Luiz Vieira no artigo The Transnational Other: Street Kids in Contemporary Brazilian Cinema (no livro World Cinemas, Transnational Perspectives, 2010) e, mais recentemente, por Esther Hamburguer, no artigo "Fábula ou Mitt en Copacabana de Arne Sucksdorff" (no livro coletânea da Socine a ser lançado no encontro deste ano, na Unisul). Todas essas projeções do filme foram feitas com uma cópia 16mm (tirada do internegativo brasileiro) feita nos anos 1990 pela Cinemateca do MAM, mas as exibições geraram interesse ao ponto de motivar a feitura de uma nova cópia, dessa vez em 35mm, em 2011 (sobre o assunto, ver esse e esse post)


Fábula... Meu lar em Copacabana (Mitt Hem Ar Copacabana, dir. Arne Sucksdorff, 1965)

O diretor sueco Arne Sucksdorff gravou seu nome na história do cinema brasileiro ao ministrar no Rio de Janeiro, entre 1962 e 1963, o famoso seminário de cinema pelo qual passou meio Cinema Novo. Naquele momento, Sucksdorff era um cineasta renomado e seu curso – que tinha um foco especial nas novas técnicas do documentário – marcou toda uma geração.
Encerrado o seminário, o cineasta continuou no Brasil (onde viveu muitos anos) e realizou o filme Fábula... Meu lar em Copacabana (Mitt Hem Ar Copacabana), co-produção sueca filmada no Rio de Janeiro, com atores e equipe técnica brasileira.
O filme faz uma crônica da vida de quatro crianças órfãs: os irmãos Paulinho (Josafá da Silva Santos), Lici (Leila Santos de Souza) e Jorginho (Cosme dos Santos), além do amigo Rico (Toninho Carlos de Lima). Juntos formam uma pequena família de despossuídos, sem pai, mãe, nome ou endereço.  Se o Estado só lhes oferece a violência do reformatório – de onde Rico fugiu –, jogados à própria sorte enfrentam um mundo regido pela lei do mais forte. Desalojados por bandidos do precário barraco no alto da favela, os quatro fazem das ruas de Copacabana seu lar, na luta diária pela sobrevivência.
Observar um mundo injusto pelos olhos de uma criança foi algo recorrente no neo-realismo italiano – Vítimas da Tormenta (1946), Paisá (1946), Ladrões de Bicicleta (1948) – e presente também no seminal Rio 40 graus (1954). Entretanto, em Fábula as crianças não surgem para ilustrar uma tese ou para provocar comoção, mas sim para assumir o centro da narrativa como personagens complexos e ambíguos. Muito do vigor do filme está ligado à extraordinária atuação de seus jovens não-atores, em especial  Cosme dos Santos, o único dos protagonistas a seguir carreira artística. Por sua compleição física e extrema expressividade, pode-se fazer uma ligação imediata e bastante interessante de seu Jorginho com o recente Acerola de Douglas Silva. Mas se a naturalidade e a espontaneidade de suas interpretações os aproximam, a explosão de sensações na linha de Cidade de Deus (2002) está distante do lirismo de Fábula, cujo principal antecedente poderia ser o triste e belo Couro de Gato (1960) – também com Cosme dos Santos. Não que a violência não esteja presente de forma acentuada e tristemente atual no filme de 1965, mas ela surge com a mesma surpreendente naturalidade com que as crianças costumam ver o mundo, numa mistura de malícia e ingenuidade. Cruzando uma cidade já partida entre a favela e o asfalto, mesmo que o sol brilhe para todos na areia da praia, um inexplicável abismo separa a menina branca e rica do garoto negro e pobre. Entre o lixão impregnado de urubus e a fartura da feira, aos jovens protagonistas de Fábula só restam as sobras.  
Como diretor, fotógrafo e montador, Sucksdorff procura expor as diversas opções que são reveladas aos seus personagens, do atalho perigoso do crime ao caminho árduo do trabalho. Com surpreendente bom-humor e perspicácia, o cineasta discute no filme sua posição de estrangeiro, antecipando um debate ainda pertinente do direito à representação da miséria alheia.
Todos esses elementos fazem com que Fábula chegue aos dias de hoje com impressionante vigor, graças também ao inegável talento de seu realizador. A seqüência da morte do vendedor de balões, de uma poesia tão pungente quanto contida, é indiscutivelmente um das mais belas do cinema brasileiro.
Se na franqueza de seu abandono o menino Jorginho reclama de um mundo onde “deus é branco” e o “diabo é preto”, podemos traçar uma ponte para seu contemporâneo Deus e o diabo na terra do Sol (1964). Em sua estética da fome, Glauber Rocha afirmava que “o comportamento exato de um faminto é a violência”, apostando em filmes “gritados e desesperados”. A recusa de alguns cineastas por um realismo que passou a ser considerado burguês e reconfortante pode ter colocado à margem um filme de clássica sobriedade como Fábula. Visto mais de duas décadas depois, revela-se uma obra em que a fome cotidiana não ressoa como um berro, mas como um lamento constante, adquirindo uma força que não aponta um caminho melhor ou pior do que o trilhado por Glauber, mas simplesmente diferente. Enquanto o camponês Manuel corria desabaladamente num sertão que viraria mar, na cidade grande um menino de rua dava as costas às ondas de Copacabana, abrindo mão de sua liberdade simplesmente para não morrer.  


Rafael de Luna