quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Cinema e cerveja



Pensando nas possíveis relações entre cinema e publicidade, dois comerciais da mais recente campanha da cerveja Bohemia me chamaram a atenção. No primeiro, vários idosos se reúnem festivamente na Cervejaria Bohemia, em Petrópolis, uma espécie de museu da cerveja. O caráter histórico do local é associado ao da Bohemia, com seus 150 anos de fabricação. Destoando em idade de todos os demais presentes, um jovem diz à roda dos que elogiam a cerveja e a cervejaria:
_O próximo passo é colocar umas mulheres gostosas no nosso comercial.
_Como assim?, espanta-se um velhinho baixinho à sua direita.
_A propaganda das outras cervejas está mais jovem que a nossa, diz.
_Ótimo. Quem gosta de propaganda, assiste a deles. Quem gosta de cerveja, bebe a nossa!, responde um senhor com tom de seriedade à sua esquerda.
_CHUPA!, arremata o primeiro velhinho.

***

O segundo comercial se passa no mesmo cenário, no qual um velhinho diz:
_140 anos trabalhando aqui, ainda fico abismado como a Bohemia é gostosa.
_Falando em gostosa, vocês não querem fazer um comercial com mulher gostosa, não é?, pergunta o mesmo personagem jovem do comercial anterior.
_NÃO!, concordam os três velhinhos à sua volta.
_O que a gente faz então para deixar a nossa propaganda mais jovem?, indaga o rapaz.
_Você pode fazer o que quiser, só não mexe com a cerveja, diz o mesmo velhinho mais sério do comercial anterior.
_E nem com Dona Iolanda, diz um velhinho de visual antiquado, de boina e gravata borboleta. Logo há um insert de uma sorridente senhora igualmente vestida como as velhinhas de antigamente, com um laço enorme no pescoço, cabelos totalmente grisalhos, e brincos e colar de pérolas.
A imagem retorna rapidamente para a roda de homens bebendo cerveja. Tô pegando..., completa maliciosamente o velhinho. 
***

O mote desta campanha – “Bohemia, desde 1853, um absurdo de cerveja” – busca valorizar a tradição associada à marca. Esta tradição é representada pelo espaço físico (museu) e pelas pessoas presentes (velhinhos), que atestariam a qualidade da cerveja.
A essa qualidade comprovada pela tradição e experiência, alia-se a figura do jovem rapaz que se preocupa com o apelo da marca junto aos da sua idade. Portanto, ele sugere que a Bohemia faça propaganda como as demais cervejas fazem: com mulher gostosa.
Entretanto, as vozes da experiência não tem a mesma preocupação que ele. Para os velhinhos, a única coisa importante é o sabor da cerveja – o verdadeiro “patrimônio” da Bohemia.
É posto o conflito central deste comercial metalinguístico, uma publicidade que discute a publicidade. O jovem está preocupado que a propaganda da cerveja atinja efetivamente o seu público (como vender o produto para os jovens), enquanto os mais velhos se importam apenas com a qualidade tradicional do produto (eles não precisam desse tipo de estímulo pois conhecem o verdadeiro valor da marca).
Com a espantosa economia narrativa que caracteriza os comerciais, o conflito é posto e imediatamente solucionado simbolicamente. Não surgem as mulheres gostosas, mas um outro elemento chave das propagandas de cerveja marca presença. Afinal, em cada comercial um dos velhinhos age, ao final, exatamente como agem os jovens rapazes nas propagandas de cerveja. Isto é, fazendo piadinhas e apelando para gírias, jargões ou expressões espertinhas, sacanas e joviais, todas de conotação sexual, relacionadas à “pegação” da mulher ("tô pegando") ou à “zoação” do colega ("chupa!"). A imagem da "gostosa" é negada – a ironia está no mesmo tipo de objetivação do corpo feminino, mas com um idosa e não uma “gostosa” como alvo do olhar de cobiça. Por outro lado, a linguagem dos homens jovens infiltra-se na boca improvável dos mais velhos.
No final, o comercial da Bohemia, apesar da anunciada e questionada ausência de gostosas (na imagem, mas não nos diálogos), alinha-se aos demais comerciais de cerveja. Os velhinhos falam como os rapazes dos comerciais de cerveja e a velhinha é filmada como são filmadas as gostosas desses mesmos comerciais. A assumida diferença é ironizada com o inesperado alinhamento.

O gênero comercial de cerveja
Um dos sinais mais evidentes da consolidação de um gênero é a paródia de suas características. Nesse sentido, o comercial da Bohemia é sintomático da ampla percepção social de fórmulas e regras muito claras a respeito do que constitui, para os espectadores e para os produtores dos comerciais, um típico “comercial de cerveja”.
Para usar a terminologia genérica do teórico Rick Altman, são claramente identificados os elementos semânticos desse gênero: personagens recorrentes (as gostosas e a turma dos rapazes, todos jovens), cenários usuais (praia, barzinho, churrasco) e ambientes (dias com sol de verão). A paródia da Bohemia à princípio recusaria essa iconografia do gênero, fazendo uso de personagens velhos reunidos à noite num museu-cervejaria. Entretanto, a sintaxe do gênero (as regras que orientam a organização do universo desses personagens aos quais a cerveja é associada), que é inicialmente recusada, acaba incorporada posteriormente. Antes tarde do que nunca, surge no comercial da Bohemia o tema da pegação da gostosa sempre associado à confraternização masculina. A mulher jovem é definida por sua representação visual, enquanto o homem jovem é representado por sua expressão verbal.
Para ampliar a discussão, outros comerciais podem ser descritos para exemplificar características do gênero “comercial de cerveja”. Um comercial da campanha CervejÃO, da Nova Schin, por exemplo. Uma praia calma e relativamente vazia – portanto monótona e sonolenta – é subitamente invadida por dirigível, lanchas, carros e helicópteros trazendo “animação”: cerveja, homens e mulheres jovens. A praia é violentamente invadida, mas ninguém resiste, pelo contrário, recebe abertamente a horda. A música do Ultraje à Rigor (“Nós vamos invadir a sua praia”), transformada em jingle, perde toda a sua agressividade bélica de enfrentamento. A animação é violenta como uma blitzkrieg, mas é bem-vinda.
No gênero “comercial de cerveja” ninguém pode estar triste, chateado ou entediado. É a ditadura da animação e a apologia do excesso de entusiasmo: música agitada como a da garota-propaganda Ivete Sangalo, muita gente bonita junta (pegão generalizada), e principalmente muitas e muitas garrafas de cerveja. Se o ambiente estiver tranquilo (um pecado!), a cerveja certa muda tudo – como uma invasão pelo céu, mar e terra.
Nessa mesma campanha da Nova Schin, outro comercial brincava com a tendência do brasileiro usar o diminutivo, que apesar de poder conotar carinho, não estaria condizente com essa ditadura do excesso que acabamos de apontar. Num mesa de bar, uma roda de amigos reclama do colega falar em “cervejinha”. Ao invés de carrinho, joguinho, mulherzinha e cervejinha, o certo é terminar tudo em “ão” – logo, carrão, jogão, mulherão e cervejÃO. A piada final acontece com o surgimento de Carlinha – um mulherão – que seria, como todos os homens exclamam em uníssono, uma “exceção”.
Esse tom tatibitate dos comerciais se liga à outra característica do gênero: a tentativa desesperada dos publicitários de criarem jargões que caíam no gosto do público-alvo, como cervejão, a boa, a número 1, a redonda, gelaaada etc. Tenta-se pautar a linguagem dos consumidores, alinhando-se à estratégia dos comerciais de cerveja de afirmar sua autoridade sobre o campo – o do comportamento dos jovens que bebem cerveja.
Há, por exemplo, a campanha da Skol 360 dedicada a definir o certo e o errado em cada um dos espaços geralmente associados à cerveja, tentando ainda criar um jargão através de neologismos: Botecabilidade, Feijucabilidade, churrascabilidade. O mesmo espírito perpassa a definição da roda de samba no comercial “Quem puxa”, da Antártica, enquanto na campanha “Redondo é rir da vida”, da Skol, a locução resume a lição: “churrasco é isso aí”. Já na campanha “Bar x Casa”, o comercial da Brahma tenta provar, objetiva e inabalavelmente, como é melhor assistir ao jogo de futebol num bar do que em casa.
Os comerciais colocam-se como árbitros do gosto de quem bebe cerveja.
Além da normatização e hierarquização dos espaços onde a cerveja é (deve ser) consumida, ocorre o mesmo processo em relação a quem ocupa esses espaços, como nos comerciais da Antártica em torno da “diretoria”. Na narração das peças publicitárias, a diretoria é explicitamente definida como a “turma gente boa que sabe aproveitar o melhor do bar”, ou mais genericamente apenas como “amigos em torno de uma boa gelada”. Implicitamente, porém, a diretoria é sempre formada concretamente por jovens bonitos de classe média, sendo as mulheres caracterizadas pela plástica e os homens pela esperteza verbal, e todos pela animação e entusiasmo à toda prova.
Nessa representação da mulher como um mero objeto definido apenas por sua plástica a ser vista pelo olhar masculino – nunca a condição de existir para ser olhada (to-be-looked-at-ness) definida por Laura Mulvey foi tão propícia –, a “gostosa” ganha a conotação de uma entidade concreta, por mais abstrata que seja. Num comercial da Skol que termina com os rapazes caindo da praia ao inferno, um dos personagens vai apontando quem vai caindo no buraco misterioso que se abre na areia: “o turista, o cachorrinho, a gostosa”. A gostosa equivale a um cachorrinho – tão simpático e anônimo quanto um animal de estimação qualquer. 
Essa objetivação é levada ao extremo na campanha “O bar da boa”, no qual a brincadeira é sempre a dúvida se a boa é a mulher, a cerveja ou as duas. Como a ironia está sempre presente nos comerciais (através sobretudo do cinismo de desautorizar, através da piada, o que acabou de se afirmar), as coisas não são tão simples. Afinal, o que é bom (ou boa) é a cerveja, a mulher, mas também a resposta espertinha que um dos homens dá – aprovação sacramentada pela boazuda Juliana Paes ao dizer a um dos personagens “Boa, rapaz!”. A qualidade do produto (a cerveja boa) é equiparada semanticamente à imagem da mulher (a boazuda) e à agilidade verbal do homem (bom de resposta).
Nesse sentido, outra característica do gênero é a alternância cômica entre o rapaz esperto e o otário. Na já citada campanha “Bar da Boa”, os espertos parecem inicialmente otários ao se recusarem a passar óleo nas costas de uma boazuda. Um “otário” (cujo caráter é representado pelas roupas, postura ou, principalmente, por estar isolado da turma na mesa do bar, pois os espertos só andam em bando) aceita o pedido e se delicia com o toque da mão na pele macia do mulherão. A consequência, porém, é que ele fica com a mão oleosa e não consegue pegar o copo de cerveja. A lição que os otários/espertos tentavam passar é que é preciso escolher entre uma boa ou outra, a cerveja ou a mulher. Mas o suposto otário se dá bem quando Juliana Paes (a verdadeira Boa) lhe dá cerveja em sua boca. O esperto/otário/esperto conseguiu juntar uma boa com outra.
O comercial da Skol litrão junta a normatização dos gostos e posturas com a dinâmica esperto/otário. O tom da narração em voz over do comercial (a Voz de Deus, conforme Jean-Claude Bernardet, isto é, a Voz da Cerveja) é explicitamente professoral: “Skol ensina como queimar o filme no churrasco”. Um rapaz exemplifica todas as características tidas como erradas: usar sunga de crochê, pochete, blazer de ombreira, óculos new age, e, por fim, ensaiar passos de lambada com Beto Barbosa, que dá o ar de sua presença. O otário, que desrespeita as regras, acerta no que importa: ele traz a cerveja correta. Desse modo, ele é premiado com a “gostosa” pedindo para ser apresentada a ele, mesmo mal vestido. A cerveja certa premia os otários com a gostosa.
Nesse comercial, como em outros, o padrão de beleza masculino dos personagens é diferente do das mulheres. Enquanto às moças tem sempre um físico perfeito, revelado pelas roupas justas e biquínis, os rapazes às vezes revelam barriguinhas acentuadas, às vezes são baixinhos, ou mesmo assumidamente feios.
Em outro comercial da Skol, um grupo de rapazes com esse perfil chega a ironizar um surfista forte, alto e mais velho que não se arrisca a entrar no mar para resgatar uma caixa de cervejas pela ameaça de ataques de tubarão. Eles praticam a auto ironia: não somos bonitos (e provavelmente não pegamos mulher), mas somos espertos (a cerveja não nos escapa). Ao final, são atacados por tubarões, mas não tem problema pois conseguiram as latinhas de Skol. Eles se dão mal, mas no final se dão bem. No caso dos personagens masculinos, bonitos ou não, pegadores ou não, o importante é manter o bom humor e a cerveja.
Desse modo, percebemos que a expressão chula dita pelo velhinho do comercial da Bohemia (“chupa!”) poderia ter saída da boca de qualquer personagem desse gênero. Feio ou bonito, velho ou moço, os homens precisam ser animados e espertos - bons de copo e bons de papo.

Cerveja e cinema
Essa tentativa de compreensão das características do gênero “comercial de cerveja” me interessa, entre outros motivos, para tentar perceber relações genéricas intermidiáticas, por exemplo, entre o cinema e a publicidade no Brasil. Um dos problemas da análise do cinema de gênero brasileiro é a superficialidade nas recorrentes constatações da influência da televisão e da publicidade sobre os filmes e vice-versa. Para além de uma função muitas vezes apenas discriminatória, há pouco esforço em perceber como se dá efetivamente essa relação.
Entretanto, parece muito promissor perceber a semelhança de algumas comédias cinematográficas contemporâneas – que já podem ser estudadas como um gênero: as novas comédias, neochanchadas ou globochanchadas – com o gênero publicitário do comercial de cerveja, que consiste, sempre, em comerciais cômicos. Um tipo de humor particular seria a primeira e mais óbvia aproximação, mas não a única possível.
O universo masculino do bar, cujas conversas giram sempre em torno dos polos “pegação” e “zoação”, e cujos personagens são hierarquizados mais pela esperteza verbal que pela beleza física, é acentuado num filme como E aí, comeu? (Felipe Joffily, 2012). O próprio título parece tirado do diálogo dos muitos comerciais de cerveja discutidos aqui.
A presença do falatório a respeito do sexo sem ele jamais ser mostrado – um sexo mais verbal do que carnal, mais anunciado e prometido do que concretizado –, tem sido outra característica comum a várias dessas comédias, de Sexo, amor e traição (Jorge Fernando, 2004) a Sexo com amor? (Wolf Maya, 2008). Aparentemente ousados, mas pudicos como os comerciais de cerveja – que, como os filmes, visam um público amplo que seria restringido com a exibição de nudez –, o sexo quase sempre fica mais na fala do que na prática.
Um universo exclusivamente de classe média, no qual qualquer outro grupo social é simbolicamente excluído, está presente tanto nos comerciais com churrascos regados a cerveja em casas com piscinas quanto em filmes como Se eu fosse você (Daniel Filho, 2006) e Se eu fosse você 2 (Daniel Filho, 2009)
A dinâmica do esperto/otário, numa atualização do malandro que caracterizaria as chanchadas dos anos 1940 e 1950, aparece de forma preponderante num filme como Vai que dá certo (Maurício Farias, 2012).
Acredito, por fim, que essa discussão comparativa entre cinema e publicidade indique um viés de análise muito promissor, mas de modo algum inédito. No clássico artigo “Teoria da relatividade”, publicado em 1979 pelo crítico José Carlos Avellar, já era proposto um exercício de pensar as pornochanchadas daquela década em relação aos comerciais de cigarro que frequentemente eram exibidos nas salas de cinema antes dos filmes. Hoje proibidos, as empresas de cigarros eram um dos mais importantes clientes do mercado de publicidade nessa época, como o são hoje empresas como a Ambev e concorrentes. Algumas características são marcantes: um certo ideal de felicidade representado por um ambiente de luxo e ostentação, a mulher como mais um objeto a ser comprado e possuído pelo macho, o homem maduro e bem sucedido simbolizado pelo uísque, carrão e iate, a lógica do se dar bem por cima do outro (“eu gosto de levar vantagem em tudo” dizia Gerson, o canhotinha de ouro, no comercial do cigarro Vila Rica). E essas características possivelmente poderiam possivelmente ser encontrados tanto no cinema quanto na publicidade da época.
Em seu texto, Avellar descreveu um desses típicos comerciais, no caso, do cigarro Benson & Hedges:

A câmera começa fechada no rosto de um homem. Ele bota um cigarro na boca e a imagem se abre. Aparece o jardim de uma casa luxuosa, num luminoso dia de sol, e o homem lá, sentado à beira da piscina, cigarro no canto da boca. Com a imagem já aberta, entram em cena quatro ou cinco mulheres, suavemente rebolantes, vestidas com um bem discreto maiozinho, se oferecendo ao mesmo tempo ao fumante na beira da piscina e ao espectador na sala de projeção. Sobre o plano do fumante cercado de mulheres surge a voz de um homem, que sussurra uma frase assim como que dá um bom conselho ou repete um pensamento mais do que conhecido: “Riqueza é como mulher, só não se preocupa quem já tem o bastante” (AVELLAR, 1979, p. 64).
Como podemos sugerir a partir do texto de Avellar, a análise do gênero “cinema de cigarro” pode ser muito interessante para pensar o cinema dessa mesma década, particularmente a pornochanchada, que representava a maior parte da produção cinematográfica dos anos 1970. Nesse sentido, um comercial dessa mesma época do Chanceller, cigarro fino e elegante, é tão metalinguístico quanto o recente comercial da cerveja Bohemia, fornecendo uma importante pista para pensarmos no que, nessa época, os publicitários e os consumidores entendiam como as características desse gênero de comercial (agora num viés de uma análise cultural dos gêneros, como propõe Jason Mittell).
O comercial de Chanceller é simples e se passa inteiramente numa sala elegantemente decorada com um rapaz sério e bem vestido falando diretamente para a câmera, descrevendo as qualidades do cigarro. No final do filmete, o garoto propaganda faz uma pergunta retórica expressamente dirigida ao espectador: “Mas aí você diz: se Chanceller é tão bom e tão fino, onde estão os carros maravilhosos, os aviões, iates e helicópteros de todo comercial de cigarro.  Aí eu respondo: e precisa?” (pode ser visto no youtube, nos 3'59'' desse vídeo)
A lógica é a mesma. Saturado o gênero, é preciso renovar, na dinâmica inerente ao gênero de repetição e inovação.

***
 
Estas são apenas esboços de indagações e intuições iniciais. De qualquer modo, pensando nessas possíveis relações entre cinema e publicidade, será que é possível (ou interessante) pensar se os comerciais de cigarro estiveram para as pornochanchadas nos anos 1970 como os comerciais de cerveja estão hoje para as globochanchadas contemporâneas? Não sei a resposta, mas creio que é uma pergunta que vale a pena ser feita.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O produtor Jece Valadão, texto de 2006

Valadão e seu filho na abertura da mostra no CCBB-RJ
Por conta de minha pesquisa sobre Plínio Marcos, acabei me interessando em estudar a carreira do ator, diretor e produtor Jece Valadão. Atualmente, inclusive, estou finalizando um artigo sobre ele para um livro sobre o estrelismo no cinema brasileiro. Nesse caso, discuto a figura estrelar do ator Jece Valadão, mas já tinha escrito antes sobre sua faceta como produtor num artigo para a mostra "As muitas faces de Jece Valadão: 75 anos de cinema", realizada no Centro Cultural Banco do Brasil em 2006, poucos meses antes de sua morte no final daquele mesmo ano. A abertura da mostra foi a única (e última) vez em que eu o vi pessoalmente. Já que nessa época os catálogos das mostras do CCBB não eram publicados na internet, meu texto "O produtor Jece Valadão" permanecia inédito na rede..



O produtor Jece Valadão

Uma das principais características da longa trajetória do “homem de cinema” Jece Valadão foi o senso de oportunidade que ele manifestou em diversos momentos de sua carreira como artista e homem de negócios, marcada pela presença à frente e atrás das câmeras. Oportunista ou pioneiro, ele gravou definitivamente seu nome na história do cinema brasileiro moderno.
A primeira grande “sacada” de Valadão foi perceber que como radioator ou locutor radiofônico jamais sairia da pindaíba, mas como corretor de anúncios para a rádio poderia ganhar (e ganhou) uma pequena fortuna. Logo foi atraído para o mundo do cinema, o que no Rio de Janeiro da época – anos 40 / 50 – significava basicamente os estúdios da Atlântida, mas onde não conseguiu passar de figurante. Vislumbrou uma oportunidade no incipiente “cinema independente” e teve uma participação importante no seminal Rio 40 graus (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1955), mas também não foi nessa trilha que ele viu seu futuro. Partiu então para o teatro e para o casamento com Dulce Rodrigues, irmã do dramaturgo Nelson Rodrigues, mas não foi nos palcos e nem com o fracassado golpe do baú que conseguiu alavancar definitivamente sua carreira.
Quando retornou ao cinema, Valadão criou uma produtora – a Magnus Filmes – e decidiu investir tudo que tinha em Os Cafajestes (1962). Influenciada pela Nouvelle Vague, se a obra de estréia do moçambicano Ruy Guerra entrou para a história como marco pré-Cinema Novo, a produção de Valadão era também um filme estrelado pela sensual vedete Norma Bengell  e no qual, segundo seu astro, “pela primeira vez o cinema mostrou como se enrola um baseado”. A ousadia e a liberdade na linguagem cinematográfica eram correspondentes à temática, embora muitos considerassem simplesmente baixaria e mau-gosto. A polêmica em torno do famoso “primeiro nu frontal do cinema brasileiro” ajudou Os Cafajestes, que, apesar dos problemas com a censura brasileira, nos anos seguintes deu muito dinheiro ao seu produtor com as vendas para o exterior.
Seguindo na mesma linha polêmica, a investida seguinte do produtor Valadão foi levar pela primeira vez às telas uma peça do seu cunhado Nelson Rodrigues. Depois de dar uma chance a Ruy Guerra – com qual chegou a trocar tapas no set –, Valadão convidou um então endividado Nelson Pereira dos Santos para dirigir Boca de Ouro (1963). Resultado: outro sucesso de bilheteria que mais tarde seria consagrado como obra-prima do cinema brasileiro. Para parte do público e da crítica da época, o desfile de seios nus, de adultérios e de gírias era ousadia. Para outra parte, tratava-se apenas de apelação.
Tanto com o playboy de Os cafajestes, quanto com o bicheiro de Boca de ouro, Valadão contou com dois talentosos diretores que o ajudaram a consagrar sua persona de ator, que já tinha sido esboçada com o malandro de Rio 40 graus. “Mau caráter”, “bandido”, “crápula”... os adjetivos presentes nos títulos dos filmes seguintes estrelados pelo ator, produtor e logo, também diretor, confirmariam definitivamente seu lugar de destaque num “star system” do cinema brasileiro.
Atrás das câmeras Valadão se tornou também um dos principais nomes do cinema brasileiro, produzindo mais de uma dúzia de filmes ao longo da década de 60. Insistiu em determinados filões (adaptações de peças de sucesso) e se aprofundou no gênero policial (que ganhara força com o sucesso de O assalto ao trem pagador), mas também procurou diversificar sua produção com filmes infantis, comédias musicais e dramas intimistas.
Estabelecendo um acordo de co-produção e distribuição com Herbert Richers e realizando filmes baratos e em série, a Magnus Filmes viabilizou a inserção de seus filmes no mercado. Pretendendo seguir o modelo de produção industrial dos estúdios hollywoodianos, Valadão se distanciou mais e mais dos integrantes do Cinema Novo, com que passou a trocar agressões mútuas. 
Entretanto, apesar do investimento em filmes de gênero ou ainda em fórmulas fáceis e modismos passageiros, a compreensão das produções da Magnus Filmes como o “cinema comercial” não pode impedir o reconhecimento de um alto nível de elaboração artística em certos filmes, como A navalha na carne (1970). Adaptação da peça homônima que estreara em 1967, o projeto “autoral” de Braz Chediak, jovem e experiente roteirista e assistente de direção de diversos filmes de Valadão, se destacava pelo elenco, sobretudo pela magnífica interpretação de Glauce Rocha, pela extraordinária fotografia e câmera na mão de Hélio Silva e, sobretudo, por um diálogo vigoroso e sofisticado com o poderoso texto de Plínio Marcos.
Realizado em preto e branco em 1969 quando o cinema brasileiro – incluindo o Cinema Novo – já se encaminhava definitivamente para as bem mais dispendiosas produções coloridas, A navalha na carne é um filme realizado a um baixíssimo custo, com equipe mínima, total liberdade, e extrema agressividade do tema e da linguagem na abordagem de personagens e cenário marginais.
Por outro lado, o filme de Braz Chediak também aproveitava o sucesso de uma peça de enorme repercussão, a fama do astro Valadão e se inseria num filão de obras propositadamente polêmicas e ousadas no tratamento de temas tabus, sobretudo o sexo e a violência, e que vinha sendo explorado tanto pelo cinema assumidamente comercial – como os “shockumentaries” na linha do italiano Mundo cão (Mondo cane, 1962) ou a produção inicial da Boca do Lixo –, como também por um cinema de maior prestígio, especialmente os “filmes de arte europeus” ou o “novo cinema americano”.
Depois de seis meses interditado pela censura, A navalha na carne teve pré-estréia no berço da cinefilia carioca, a Cinemateca do MAM – algo pouco comum para a produção corrente da Magnus Filmes –, mas foi também o primeiro filme produzido por Valadão a ser distribuído pela União Cinematográfica Brasileira, de Severiano Ribeiro, dono do maior circuito exibidor do país. Apesar de esquecido posteriormente, o filme A navalha na carne tornou-se um surpreendente sucesso de público em 1970.
Exatamente nesta época, Valadão se uniu a dois dos principais produtores do país, Jarbas Barbosa e Roberto Farias, criando a distribuidora Ipanema Filmes. No momento em que a DiFilm, a “distribuidora do Cinema Novo”, acabava, Valadão se aliava aos produtores dos primeiros sucessos do trapalhão Renato Aragão (Barbosa) e da série com o astro Roberto Carlos (Farias), dando origem à empresa que viria a ser a base da distribuidora da Embrafilme.
Nesse começo da década de 70, em pleno “milagre econômico”, quando a ditadura adotou o projeto de industrialização do cinema brasileiro e passou a privilegiar os filmes de grande penetração no público, Valadão, como os demais produtores do “cinema comercial” que tinham reivindicado a criação da empresa em 1969, era um dos principais favorecidos. Se a pauta era conquistar o “nosso mercado”, seu discurso era um dos que mais evidenciava essa meta, embora essa opinião fosse compartilhada por diversos cineastas, como Carlos Diegues, que já tinham alardeado o fim do Cinema Novo. Entretanto, Valadão definia sua estratégia com muita clareza, visando o mercado interno, pretendendo adotar fórmulas e modelos consagrados, ressaltando os valores de produção dos filmes e chegando a planejar submeter o conteúdo das produções às pesquisas de opinião com o público – algo que a Rede Globo começava a fazer sistematicamente naquele mesmo momento.
Ao longo dos anos 70 Valadão novamente tentou seguir as tendências e diversificar sua produção. Investiu novamente em Plínio Marcos com a adaptação de Dois perdidos numa noite suja (1971), mas não repetiu o êxito do filme anterior. Vinha obtendo mais sucesso com o que ele chamava de pornocafajestadas: a trilogia Memórias de um gigolô (dir. Alberto Pieralisi, 1970), O enterro da cafetina (dir. Alberto Pieralisi,1971) e A filha de Madame Betina (dir. Jece Valadão, 1972).
Quando se envolveu novamente na produção de outro “filme artístico”, Mãos vazias (dir. Luiz Carlos Lacerda, 1971), foi acusado pelo diretor de utilizar parte do financiamento da Embrafilme em outra produção sua (O enterro da cafetina). Pelas páginas dos jornais Valadão rebateu as acusações criticando a falta de profissionalismo do cineasta (“Lacerda se enchia de maconha e ficava todo mundo nu para dar mais clima ao filme”).  
Apesar do sucesso inicial das “pornocafajestadas”, quando o mercado foi invadido pelas pornochanchadas da Boca do Lixo e a imprensa iniciou uma campanha contra o “baixo nível” do cinema brasileiro, Valadão passou a investir principalmente em filmes policiais, ainda assim com alto teor erótico. Essa mudança também se deu com outros personagens dessa “primeira fase” das pornochanchadas, como o cineasta e ator Reginaldo Faria, mas ao contrário do diretor de Os paqueras (1969), Valadão não renegava uma possível paternidade do filão de comédias eróticas, embora afirmasse que “seus seguidores” tinham “engrossado muito”.
Nos policiais da década de 70, Valadão tentou criar uma serialização em torno de sua figura, um “Clint Eastwood nacional”, voltado para o público masculino e popular, próximo de um Tony Vieira e de um David Cardoso. Como os dois astros da Boca do Lixo, Valadão também estava distante do “cinema de qualidade” da segunda fase da Embrafilme, iniciada em 1974, quando a empresa passou a privilegiar os realizadores, sobretudo o grupo político ligado ao Cinema Novo. Se não alcançou grandes sucessos como Barra Pesada (dir. Reginaldo Faria, 1977) ou Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (dir. Hector Babenco, 1978), Valadão conseguiu alguma repercussão com o assumidamente oportunista Eu matei Lúcio Flávio (dir. Antonio Calmon, 1979), a versão do policial Mariel Mariscot. Entretanto, o fracasso do seguinte O torturador (dir. Antonio Calmon, 1980) praticamente encerrou o projeto.
Diante dessa encruzilhada e do enorme sucesso do recém-liberado filme de sexo explícito, em 1981 Valadão chegou a produzir um pornô explícito (Viagem ao céu da boca, dir. Roberto Mauro), embora seu nome estrategicamente não tenha aparecido nos créditos. Um de seus últimos trabalhos como produtor foi a adaptação da peça de Nelson Rodrigues A serpente (1980), dirigida por seu filho, Alberto Magno, filme que permaneceu inédito comercialmente até os anos 90.
Se chegou a ser vice-presidente do Sindicato dos Produtores e do Sindicato da Indústria Cinematográfica, sendo até mesmo cogitado como candidato à direção da Embrafilme e da Concine em 1979, nos anos 80, como muitos outros profissionais, Valadão se afastou gradativamente do cinema. Com uma longa e frutífera carreira de produtor empenhado sobretudo no filme médio para o mercado, o nome por trás da Magnus Filmes foi mais um profissional atingido pela crise que se avolumou ao longo daquela década.


Rafael de Luna Freire